Barrosões Ilustres

Bento Gonçalves da Cruz

O homem que de pastor a médico e escritor de renome, se constituíu como um dos grandes vultos da História de Barroso...

Centenário do Nascimento 

O centenário do nascimento de Bento da Cruz foi assinalado com um vasto conjunto de iniciativas que irá prolongar-se até Fevereiro de 2026.

A Presidente da Câmara Municipal de Montalegre, Fátima Fernandes, revelou que o programa pretendeu honrar "o nosso autor maior", promovendo a sua obra junto de diferentes públicos e gerações.

As comemorações tiveram início em janeiro, mas foi no dia 22 de Fevereiro, data do centenário do nascimento do médico e escritor, que se realizaram os momentos mais simbólicos em sua memória: uma romagem ao cemitério de Peireses, onde foi colocada uma coroa de flores e feita a sua evocação, a que se seguiu uma visita à casa onde viveu Bento da Cruz, onde foram lidos trechos da sua obra e instalada uma placa comemorativa.

A noite foi marcada por uma tertúlia, subordinada ao tema "Bento da Cruz ontem, hoje e sempre". O evento contou com a presença de diversas personalidades ligadas à literatura e à investigação sobre o autor, das quais se destacam António Baptista Lopes, editor da sua obra, Assunção Anes, Presidente da Academia das Letras de Trás-os-Montes e Alto Douro, e José Dias Baptista, historiador e investigador.

Marcaram igualmente presença, professores como Bela Cândida, que realizou um mestrado sobre Bento da Cruz, e João Rua Alves, natural de Peireses.

Ao longo do ano, haverá ainda um conjunto de actividades em colaboração com o Agrupamento de Escolas Dr. Bento da Cruz e as Bibliotecas escolares, nomeadamente em Abril, mês do livro. Durante o programa de férias, também será dada especial atenção à obra do autor, promovendo o seu legado entre os mais jovens.

A edição da Feira do Livro de Montalegre terá também como grande destaque a obra de Bento da Cruz, com um programa específico dedicado ao escritor, através de momentos de leitura, debates e iniciativas de dinamização cultural.

Durante as cerimónias, Fátima Fernandes, Presidente do Municipio montalegrense, apelou ainda à leitura da obra de Bento da Cruz, considerando que "pegar num dos seus livros é como olhar-se ao espelho", destacando a forma como o autor retratou o comunitarismo, os valores e as tradições de Trás-os-Montes, reforçando a importância de perpetuar a sua memória através do conhecimento da sua escrita. "Bento da Cruz perdura no tempo e continuará a ser lido pelas futuras gerações, porque os valores que transmite são universais e fazem parte da nossa identidade", sublinhou a autarca.

Com um legado literário profundamente enraizado na cultura barrosã, Bento da Cruz continua a ser uma referência maior, e o seu centenário foi uma oportunidade para reafirmar a sua relevância na literatura portuguesa.

Bento da Cruz, de seu nome completo, Bento Gonçalves da Cruz, era filho de Manuel Gonçalves da Cruz e Maria Alves, pequenos proprietários rurais - chamados de «Os Marinheiros».

Nasceu em Peirezes, uma aldeia pertencente à freguesia de S. Vicente da Chã, do concelho de Montalegre, a 22 de Fevereiro de 1925. Desde cedo foi iniciado no trabalho do campo e na pastorícia, único sustento da família.

A miséria e as dificuldades que viu no povo do seu tempo irão marcar profundamente toda a sua obra. Segundo os seus contemporâneos, era desejo de seus pais ter um filho presbítero, de tal modo que quase todos os filhos varões frequentaram o Seminário. O povo recorda ainda hoje o sacrifício que os progenitores empreenderam para que eles pudessem estudar.

Assim, depois de concluir os primeiros estudos, veio a ingressar a 16 de Outubro de 1940, na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges Beneditinos, disposto a seguir a vida religiosa. Aí concluiu com distinção o antigo Curso dos Seminários e foi director literário de duaas revistas estudantis «O Colégio» e «Claustrália». Ao longo do tempo, leu os Grandes Clássicos da Antiguidade e entrou no noviciado em 1945.

Porém, terminado este, decidiu abandonar a ordem em 1946, curiosamente também, no dia 16 de Outubro, pese embora sempre tenha mantido cordiais relações com os Monges de Singeverga onde participava regularmente em encontros de antigos alunos.

Contava sobre esse período o seguinte: "fui cumpridor da regra e apontado como exemplo. A minha saída do seminário pode ter afectado alguns condiscípulos que me tomaram como referência. A maior pena que me ficou desse tempo, foi não ter vivido essa extraordinária experiência de vida na aldeia entre os 15 e os 21 anos. Senti toda a vida a falta desse percurso de juventude."

A sua primeira Obra « Hemoptise» dá-nos a conhecer esta etapa da sua caminhada.

Dois anos depois matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

Concluída a formatura, abriu consultório de clínica geral em Souselas, no concelho de Coimbra em 1955. Pouco depois, em 1956, estabeleceu-se no Barroso, praticando clínica geral e estomatologia. Teve consultório na aldeia de Pisões, onde então se empreendia a construção de uma das maiores albufeiras do País, a Barragem do Alto Rabagão, que viria a ser concluída no ano de 1964 e se constitui hoje como um dos empreendimentos hidroélectricos mais importantes do país, onde prestou serviço aos trabalhadores que a construíram. 

Como Médico percorreu toda a região de Barroso e ficou conhecido pelo serviço prestado aos pobres a quem não cobrava dinheiro e até oferecia os medicamentos. De tal facto existe um vasto leque de testemunhos de como, naquela terra isolada, curou e salvou inúmeras vidas. Em 1971 fixa-se no Porto, onde se manteve até ao final da vida, e onde exerceu medicina até se reformar.

Depois do 25 de Abril de 1974, fundou o jornal «Correio do Planalto». Bento da Cruz nunca se desligou da aldeia e do mundo rural em que nasceu. Visitava-a regularmente e nela gozou sempre as suas férias e os seus tempos de descanso. E nela se inspirou também sobre o que escrevia, designadamente os vastos e famosos «Prolegómenos», crónicas que manteve no seu Jornal, das quais resultaram três obras com esse título, abordando na sua maioria temáticas rurais e histórias de antanho. Era frequente encontrá-lo nos seus muitos passeios pelos campos e velhos caminhos da terra. Ali reconstruiu também a casa de seu avô de forma rústica evocando o Barroso de antigamente.

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António Lourenço Fontes

O homem que continua na luta

Vida e Obra

Três mil livros e cerca de cem mil documentos  é o legado do Padre Fontes

já disponível ao público...

A Biblioteca Padre Fontes, agora acessível ao público no Ecomuseu de Barroso, é um novo marco para a preservação e estudo da História e cultura da região. O espólio, doado pelo próprio, conta com cerca de 3 mil livros e 100 mil documentos que reflectem as suas décadas de dedicação à investigação e ao património do Barroso.

O Ecomuseu de Barroso tornou acessíveis materiais sobre a vida e obra do Padre Fontes. Estão disponíveis para consulta pública no próprio espaço ou por via digital. São milhares de anotações, obras, manuscritos, livros, objetos, fotografias e muito mais. A iniciativa visa aproximar o público, proporcionando o acesso a materiais que foram cuidadosamente preservados ao longos dos anos em sua casa e que mostram a dimensão cultural desta figura emblemática do concelho."

"Aquilo que aqui está não tem preço. O seu valor vai para além de qualquer montante que pudéssemos atribuir, porque representa toda uma vida dedicada ao conhecimento e à cultura." Foi com estas palavras que Fátima Fernandes, Presidente da Câmara Municipal de Montalegre, assinalou a abertura ao público da Biblioteca do Padre Fontes, um acervo vasto e precioso que agora fica acessível a investigadores, estudantes e à comunidade.

O espólio, composto por cerca de 3 mil livros e mais de 80 mil documentos, foi doado pelo próprio Padre Fontes ao Município, com a condição de ser utilizado de forma universal. A digitalização de grande parte dos documentos permite que o material possa ser consultado a partir de qualquer parte do mundo, tornando-se uma fonte de estudo fundamental para quem se dedica à história, etnografia e cultura do Barroso.

"Este é um espaço magnífico de trabalho e de pesquisa. Aqui estão documentos que vão fazer as delícias de muitos investigadores, ansiosos por aceder a este arquivo para as suas teses e estudos científicos", destacou Fátima Fernandes. A autarca enalteceu ainda o esforço da equipa responsável pela organização do arquivo, liderada por Constança, que ao longo de oito meses, catalogou e estruturou o material.

A Biblioteca reúne livros, documentos e equipamentos utilizados pelo Padre Fontes nas suas recolhas etnográficas, e ainda imagens da cultura transmontana. Segundo Fátima Fernandes, este espaço reflecte a missão de toda uma vida. "O Padre Fontes criou pontes, trouxe conhecimento e levou o nome do Barroso ao mundo. Hoje, deixa-nos este tesouro inestimável."

A partir de agora, o acervo está disponível para consulta, colocando Montalegre como um Centro de Estudo e preservação do Património Cultural da região.

Vida e Obra

Honrar o Padre Fontes é algo que qualquer barrosão que se preze deve levar muito a sério. Fontes, foi o Homem e o Padre rebelde que nunca negou sê-lo. Nos seus diários pessoais, está toda a narrativa da sua inquietação. Contrariou sempre as leis da Igreja com que não concordava, afrontou o salazarismo e encheu o peito contra a Guerra Colonial. Pesquisou o oculto para entender a crendice – "porque só ao entendê-la podia destruí-la." Um verdadeiro ícone das Terras de Barroso

Quem pegar num mapa e percorrer com um dedo a linha da fronteira norte do país, encontra Vilar de Perdizes entre o lado transmontano do Gerês e a cidade de Chaves, numa região conhecida por Alto Barroso. A aldeia terá hoje cerca de quatro centenas e meia de almas, gente que até aos anos de 1980 viveu do contrabando e hoje ganha o sustento com o gado e alguma restauração. É por isso habitual ter dificuldades a entrar no povoado ao fim da tarde: a hora do crepúsculo enche a única estrada de acesso a Vilar de gado bovino, caprino e ovino, que regressam às cortes após um dia de pasto. Mesmo no centro do lugar fica a casa de António Lourenço Fontes, padre. É edifício mais comprido do que largo, com paredes de granito e pequenas janelas quadradas por onde a luz entra sempre focada. Nas tradicionais habitações barrosãs, raramente o sol se mostra capaz de inundar um quarto inteiro – e a do Padre Fontes parece estar sempre mergulhada numa relativa penumbra. É aqui, nesta casa escura com paredes forradas de livros, que começa esta história.

À entrada está a biblioteca de temas religiosos. Estantes onde sobram bíblias e interpretações da bíblia, teses de teologia, relatos da vida dos santos. Dali acede-se à parte traseira da casa. No primeiro quarto está a secção de política, sociologia e uma parede toda dedicada a escritores e poetas transmontanos. No segundo estão os livros de botânica, etnologia e antropologia. Depois há uma porta de madeira que dá acesso a um antigo lagar de azeite, também ele forrado de prateleiras. "Tenho aqui uma coisa que nunca mostrei a ninguém", diz o homem, enquanto galga um pequeno muro e procura com os dedos uma caixa. Lá dentro, pequenos cadernos gatafunhados com letra miúda, notas de pensamentos íntimos, relatos de tradições pagãs, escritos proibidos de contestação ao regime e à Igreja. O primeiro caderno é de 1950, ano em que Fontes entrou, tinha 10 anos, no seminário. "Isto é o meu diário. Mantive-o sempre comigo e mais ninguém. Talvez seja tempo de o partilhar." Vai agora fazê-lo, doando todo o seu acervo pessoal ao Municipio de Montalegre-

•As "estórias" da mãe …

Em conversa connosco na sua casa de Vilar de Perdizes, António Lourenço Fontes, fez saber que nasceu em Cambezes do Rio, terra que não nega, em 1940.

Diz ter pago o preço de o esconderem numa aldeia isolada do Alto Barroso. Mas ele ripostou, fez do fim do mundo o seu centro. Na terceira página do seu diário de 1957 escreveu esta frase que pode bem explicá-lo por inteiro: "Trago comigo o terço na mão e o diabo no coração". Diz-nos, que a entrada no Seminário de Vila Real, aos 10 anos, foi gesto da própria vontade. "sempre tive sede de conhecer o mundo. Nas circunstâncias em que vivia, uma família pobre de 12 irmãos, ir para padre era a única forma de alimentar a minha curiosidade". Nas férias, quando tornava a casa, sentava-se na cozinha a ouvir as histórias da mãe. E foi por isso que começou a escrever os seus diários. "Ela recitava-me ladainhas para curar todos os males, misturas de ervas para tratar enfermidades, responsos para afastar os demónios. Fazia-o para que eu me aprendesse a proteger agora que tinha saído debaix- da saia dela. Eu escrevia tudo, tudo, tudo". Por isso, se tornou no grande etnólogo da ruralidade portuguesa.

O "conquistador"- De "Marotus" a "Ramiro Concha do Rio"...

Durante a semana aprendia a ser padre, os sábados e domingos passava-os a ouvir lendas e a bailaricar nas festas.

"Aos 17 anos, o reitor descobriu que eu tinha estado num bailarico e tinha dançado com uma rapariga a noite toda. Já me achavam meio estranho, então aquela foi a desculpa para me expulsarem." Não era bem o que tinha nos planos, mas ao sair do seminário decidiu agarrar numa mochila e cumprir um sonho antigo: ir a Sevilha. Não levou mais do que uma tenda, uma bíblia, uma muda de roupa e um tacho. "Apanhava boleia de alguns carros motorizados, mas sobretudo de carros de bois. Acampava onde calhava, conheci o meu país inteiro, em Espanha fui às touradas. Foi a maior aventura da minha vida." A prova está num caderno inteiro com os detalhes dessa viagem, onde estão colados bilhetes de entrada em museus, desenhos de paisagens e registos de despesas."Quando voltei à aldeia, havia uma carta em casa. O seminário tinha decidido readmitir-me. Reuni com o reitor que me disse: "Ficas, mas tens de virar a casaca". "Eu disse que sim, mas cá para mim pensei que a partir de agora havia de fazer as coisas à minha maneira".

A partir dessa altura o diário de Fontes, tornou-se no ensaio para o jornal clandestino que haveria de escrever no Seminário.Chamava-se A Trama, era escrito à mão, e assinado com o pseudónimo de Marotus. Ali, convocava os colegas que se iam tornar padres a ouvirem o povo e as suas tradições, "porque cada velho que se extingue é uma biblioteca que morre."Gozava de caras com as incoerências do reitor, que apregoava a caridade e depois vivia faustosamente, reivindicava a descida do preço das propinas e questionava a utilidade do voto de celibato. Os textos originais ainda estão ali - diz-nos e ri-se ao lê-los outra vez. Não olhava para eles há mais de 50 anos.

Fazia uma única cópia, que deixava à porta do quarto dos amigos – e estes depois rodavam-no por toda a gente. Ninguém sabia quem era Marotus. No dia em que os padres descobriram a primeira cópia de A Trama houve um inquérito para apurar a identidade do autor. Mas nunca deu frutos. Sereno, a ver o escândalo diante dos seus olhos, Fontes ria-se sozinho. Levava o terço na mão e o diabo no coração. 

"Aos 17 anos, o reitor descobriu que eu tinha estado num bailarico e tinha dançado com uma rapariga a noite toda. Já me achavam meio estranho, então aquela foi a desculpa para me expulsarem." Não era bem o que tinha nos planos, mas ao sair do seminário decidiu agarrar numa mochila e cumprir um sonho antigo: ir a Sevilha.

Na véspera de ser ordenado, a 22 de Junho de 1963, o reitor do Seminário de Vila Real disse-lhe que a cerimónia ia ser anulada. "Tinha-lhe constado que eu ia fazer uma festa na minha aldeia depois da missa nova e ele disse-me que não iria tornar padre quem só estava interessado em bailaricos." O rapaz exasperou, pois era a primeira vez em mais de um século que a aldeia produzia um sacerdote. Mas ripostou: "Só se combate o diabo com alegria." O superior olhou-o demoradamente e por fim acedeu. Aquele rapaz estranho iria mesmo tornar-se operário de Cristo. Nessa noite, António Lourenço Fontes escreveu no seu diário uma das mais inquietas páginas do registo: "O Amândio diz que me vão capar, e a verdade é que lá terei de fazer o voto de celibato. Nem sei bem o que vou fazer. É mais um proforma do que um compromisso jurado."

•Nunca fechei a porta a ninguém…

Mesmo hoje, admite que teve várias namoradas depois de ser padre. E insiste as vezes que forem precisas que não faz qualquer sentido que os padres não se possam casar. "Amo menos a Deus se amar uma mulher também?!..."

Ainda tem esperança que este Papa, Francisco, traga essa lufada de ar fresco à Igreja. Uma vez ordenado, mandaram-no para Tourém, que era a aldeia mais isolada de Montalegre, mas também a mais autêntica. Recusava-se a vestir batina, o que acabaria por revelar-se bastante útil para ser aceite na comunidade."Nessa altura, havia uma igreja protestante na aldeia, fundada por um militar espanhol que se tinha estabelecido ali. Andavam às turras com os católicos, mas tratei logo de acalmar os ânimos, eram todos filhos de Deus. Acabámos a celebrar a missa juntos e pronto."

Ali, nos primeiros anos teve tempo de prosseguir a recolha de tradições, mas depois começou a sangria de rapazes. Os diários de 1967 a 1969 são de profunda reflexão política. "Estou farto destes senhores medievais que nos governam. Nunca seremos um país desenvolvido enquanto o povo sentir que está sempre em dívida com os poderosos", lê-se a 15 de Março de 1968. No ano seguinte, a 12 de Fevereiro: "O povo está a desenvolver uma tendência de desertar dos meios rurais. Pois se aqui só há fome e trabalho duro, que havemos de fazer?!... Emigram, fogem desta vida e fogem da guerra". Era o inicio do surto…

Nos primeiros anos como sacerdote, teve tempo de prosseguir a recolha de tradições, mas depois começou a sangria de rapazes. Os diários de 1967 a 1969 são de profunda reflexão política. "Estou farto destes senhores medievais que nos governam. Nunca seremos um país desenvolvido enquanto o povo sentir que está sempre em dívida com os poderosos"… 

Uma semana depois, a 19: "Porque raio andam estes rapazes a matar africanos que querem fazer da sua terra um país? Esta guerra tem de acabar e depressa. E esta ditadura o mesmo."

Fontes escrevia um jornal secreto para os soldados em África. Contra a guerra e contra a ditadura. Transformava estes pensamentos em cartas, e enviava-as ao irmão, que estava em Moçambique, e a um par de rapazes de Tourém, que estavam em Angola e na Guiné. Assinava com o pseudónimo "Ramiro Concha do Rio", nome que voltaria a usar anos mais tarde, quando abriu o jornal Notícias de Barroso. "Como iam num envelope da Igreja sabia que não seriam censuradas. E eles, lá em África, tinham instruções para lê-las em voz alta a um grupo de confiança uma única vez. E depois queimá-las". Com medo da PIDE, inventou um alfabeto secreto de linhas e pontos, com que começou a escrever os textos mais incendiários do diário. "E também fiz umas cartas com tinta invisível, feita de sumo de limão. Quando se aproximava do calor podia ler-se o que eu tinha escrito."

•Rir na cara do diabo 

Em 1971 os seus bons serviços foram recompensados. Para resolver a fome abundante na região tinha organizado cursos agrícolas, que obrigavam o Governo Civil a distribuir leite e farinha pelo povo. Tourém estava-lhe grata. "O Bispo perguntou-me se queria ir para o Porto, mas numa cidade nada poderia fazer pelo povo. Pedi-lhe para ir para Vilar de Perdizes, que apesar de tudo estava menos isolada" - e foi. Os dados que tinha recolhido utilizava-os agora em peças de teatro, que escangalhavam as gentes da aldeia de riso. "Casamentos pagãos, tradições de bruxaria, todas essas coisas que o povo estava acostumado a temer." Dizia-se naquela altura que não se devia assobiar de noite que o som chamava o diabo. "Pois a primeira peça que fiz começava no meio do terreiro, à meia-noite, comigo a assobiar. Era a minha arma para aniquilar a crendice: gozar com ela." 

"As coisas diabólicas só se destroem com alegria. Venha a festa". No dia 27 de abril de 1974, António Lourenço Fontes escreveu no seu diário que tinha havido uma revolução em Lisboa e que lhe parecia que o país tinha finalmente condições para se libertar do seu jugo medieval. "A primeira coisa a fazer é ensinar este povo a ler, a escrever, e a ensinar-lhes os direitos que têm diante dos poderosos." Preces atendidas!...

Meses depois, entrava em marcha a campanha nacional contra o analfabetismo e desaguava em Vilar de Perdizes um grupo de professores de Lisboa. "Foram tempos extraordinários, esses." Um ano depois, o Padre Fontes editou o primeiro volume de Etnografia Transmontana – Crenças e Tradições de Barroso. Três anos mais tarde, um segundo volume, também ele feito a partir da recolha que enchera as páginas do seu diário. Manuel Barros, professor de antropologia da Universidade do Porto convidou-o a ir apresentar o livro para uma plateia cheia. "Temos diante de nós o mais importante etnógrafo português depois do Abade de Baçal", disse então. Foi por tudo isto que se lançou de cabeça a um novo "escândalo", em 1982: a organização do 1.º Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, ao mesmo tempo em que criava o jornal Notícias de Barroso. "Percebi que só o poder da imprensa e da opinião pública, me permitiria enfrentar os poderes estabelecidos na Igreja e na política."

•A organização do 1.º Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes"

As coisas diabólicas só se destroem com alegria. "Venha a festa". 

No dia 27 de abril de 1974, António Lourenço Fontes escreveu no seu diário que tinha havido uma revolução em Lisboa e que lhe parecia que o país tinha finalmente condições para se libertar do seu jugo medieval. "A primeira coisa a fazer é ensinar este povo a ler, a escrever, e a ensinar-lhes os direitos que têm diante dos poderosos." Preces atendidas!... Meses depois, entrava em marcha a campanha nacional contra o analfabetismo e desaguava em Vilar de Perdizes um grupo de professores de Lisboa. "Foram tempos extraordinários, esses." Um ano depois, o Padre Fontes editou o primeiro volume de Etnografia Transmontana – Crenças e Tradições de Barroso. Três anos mais tarde, um segundo volume, também ele feito a partir da recolha que enchera as páginas do seu diário. Manuel Barros, professor de antropologia da Universidade do Porto convidou-o a ir apresentar o livro para uma plateia cheia. "Temos diante de nós o mais importante etnógrafo português depois do Abade de Baçal", disse então. Foi por tudo isto que se lançou de cabeça a um novo "escândalo", em 1982: a organização do 1.º Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, ao mesmo tempo em que criava o jornal Notícias de Barroso. "Percebi que só o poder da imprensa e da opinião pública, me permitiria enfrentar os poderes estabelecidos na Igreja e na política."

No encontro que tivemos durante um dia em sua casa, apenas interrompido com um intervalo para uma ida até Chaves e um pequeno passeio, ficamos a saber que o Padre Fontes, continua a segurar uma máscara do diabo. É uma das muitas esculturas que guarda em casa. É o tal homem que nunca quis agradar ao poder, antes quis entender as suas gentes. E elas retribuem-lhe o louvor. A sua porta, presente ou ausente, continua sempre aberta e disso fica o nosso testemunho. 

No seu semanário dava conta das tradições pagãs e como retorno recebia cartas furiosas de padres e autarcas. Tem-nas todas guardadas - um chorrilho de ameaças, que agora são incluídas no acervo que resolveu doar à Câmara Municipal .

No encontro que tivemos durante um dia em sua casa, apenas interrompido com um intervalo para uma ida até Chaves e um pequeno passeio, ficamos a saber que o Padre Fontes, continua a segurar uma máscara do diabo. É uma das muitas esculturas que guarda em casa. É o tal homem que nunca quis agradar ao poder, antes quis entender as suas gentes. E elas retribuem-lhe o louvor. A sua porta, presente ou ausente, continua sempre aberta e disso fica o nosso testemunho. No regresso, lá estava a mesa repleta de prendas que na sua ausência ali foram deixadas por alguém que não precisou de pedir licença para entrar.

Falta-lhe o reconhecimento dos seus méritos pelos Poderes Centrais instituídos, mas o Homem que continua ali para as curvas, diz passar bem sem isso. Pela nossa parte, o obrigado pela companhia e oferta da caneta com o seu nome gravado – uma medalha. Vemo-nos um dia destes…


João Barroso da Fonte

Setenta e dois anos ao serviço do jornalismo em Portugal 

Por uma questão de justiça, a crónica de hoje, vai inteirinha para João Barroso da Fonte, que a 24 deste mês de Janeiro, perfaz o bonito número de 72 anos ao serviço do jornalismo em Portugal, afirmando-se como o único decano da especialidade ao serviço do país e das comunidades.

Uma crónica, que se entende como um louvor a este homem nascido em Codeçoso da Chã, uma aldeia do concelho de Montalegre, a 19 de Fevereiro de 1939. Barroso da Fonte, que frequentou o Seminário de Vila Real entre 1952 e 1962, se licenciou-se em Filosofia no ano de 1982 e concluíu o respectivo Mestrado na Universidade do Minho em 1997.

Um homem "polémico", um conhecedor de causas e um lutador pelos valores da honestidade, da competência e a da lealdade. Barroso da Fonte, veio de um lar de dez irmãos e trouxe consigo as cicatrizes da enxada, do gadanho e apresenta-se onde quer que esteja com as caraterísticas herdadas de seus pais: a frontalidade barrosã como "marca registada". É autor de mais de meia centena de títulos, entre os quais "D. Afonso Henriques – Um Rei polémico" e "D. Afonso Henriques 900 anos". Porém, a História que escreveu é bem maior. Depois de trabalhar na Barragem de Pisões, leccionou no Liceu Nacional de Chaves e em 1975, transferiu-se para Guimarães, para trabalhar na Inspecção do Trabalho e no IEFP-Instituto do Emprego e Formação Profissional. Foi Director da delegação do Porto da comunicação social, Vereador a tempo inteiro do pelouro da Cultura do Município local, e Director do semanário O Comércio de Guimarães - o mais antigo jornal do distrito de Braga.

Para além destes, esteve também entre os fundadores da Rádio Santiago e foi Director da revista Gil Vicente, do jornal Voz de Guimarães e do Poetas & Trovadores com já mais de três décadas de vida. João Barroso da Fonte, que se iniciou no jornalismo em 24 de Janeiro de 1953, leva já 72 anos de labuta nesta actividade, e promete não se ficar por aqui. Além da sua vasta obra, fez ainda os prefácios de cerca de meia centena de livros, sobretudo de poesia, de vários autores.

Barroso da Fonte é daqueles homens que subindo a pulso alcançou o pódio da estabilidade moral e social que os distingue. O gosto pela História está omnipresente nas suas conversas e quando chegou a altura de defender D. Afonso Henriques, ergueu bem alto os seus argumentos para refutar a ideia que o primeiro rei de Portugal havia nascido em Viseu, liderando a contestação à teoria de Almeida Fernandes, tendo ganho a batalha" à Academia Portuguesa de História.

A teoria do nascimento do nosso primeiro rei em Viseu, acabaria exactamente ali. Barroso da Fonte, junta ainda ao seu currículo literário, o galardão que o premiou como vencedor do "Prémio Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves no ano de 2015". Trata-se de um galardão anual atribuído pela editora Tartaruga, instituído pelas Câmaras Municipais de Chaves e Murça, que tem dado a conhecer muitos dos autores contemporâneos, em particular os de Barroso e restante região transmontana.

Falar por isso de algo que já muitos sabiamente falaram, não é coisa fácil. Mas falar do Doutor João Barroso da Fonte, é o mesmo que dizer, que é um desses tais favorecidos pelo seu mérito enquanto cidadão irrepreensível, homem de letras e figura pública propagada nas Terras do Barroso e em Portugal inteiro. Parabéns Doutor Barroso da Fonte, contaremos sempre consigo.

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